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quarta-feira, maio 17, 2006

Prosa desassossegada 1 

"Nasci num tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido - sem saber porquê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus. Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem vêem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado. Por isso, nem abandonei Deus tão amplamente como eles, nem aceitei nunca a Humanidade. Considerei que Deus, sendo improvável, poderia ser, podendo pois dever ser adorado; mas a Humanidade, sendo uma mera ideia biológica, e não significando mais que a espécie animal humana, não era mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal. Este culto da Humanidade, com seus ritos de Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais".

Fernando Pessoa, aliás, Bernardo Soares

Comments:
Só a natureza é divina, e ela não é divina...
Se às vezes falo dela como de um ente
É que para falar dela preciso usar da linguagem dos homens
Que dá personalidade às cousas,
E impõe nomes às cousas.
Mas as cousas não têm nome nem personalidade:
Existem, e o céu é grande e a terra larga,
E o nosso coração do tamanho de um punho fechado...
Bendito seja eu por tudo quanto não sei.
É isso tudo que verdadeiramente sou.
Gozo tudo isso como quem está aqui ao sol.

...

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

Fernando Pessoa, aliás, Alberto Caeiro
 
On,

Como deves calcular, a minha intençäo näo era pôr Pessoa como autoridade na defesa da "perspectiva crente"... Bem sei que os seus achaques de "múltipla personalidade" o fazem defender veementemente um conceito, com o mesmo brilhantismo literário, que o seu contrário.
Aliás, nem é preciso ir buscar o Alberto Caeiro; o próprio Bernardo Soares serviria perfeitamente.
Mas diz lá se o "gajo" näo condensa aqui uma série de muito interessantes questöes??...
 
Então e a grande maioria dos que dizem crer em Deus, sabem porquê? Alguma vez pensaram nisso? Ou para eles a questão não se põe?
 
Na minha ideia, o que ele diz não tem pés nem cabeça: essa oposição Deus/Humanidade como pólos de adoração não faz sentido. O erro no raciocínio situa-se em

"mas a Humanidade, sendo uma mera ideia biológica, e não significando mais que a espécie animal humana, não era mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal".

Ninguém fala de adoração do Homem - a não ser ele ( e certos espíritos obscurantistas para quem desde a Renascença o homem está perdido ).

E a Humanidade não é a espécie animal humana, nem esta é qualquer outra espécie animal.

Nonsense puro misturado com reacionarismo e biologismo.

Zé Ribeiro.
 
On,
Como calculas, näo posso falar em nome de todos os que referes...
Mas entendo que quem crê, terá as suas razöes. Mesmo que a ti näo te satisfaçam...
 
Zé,
Talvez tenhas razäo. Mas deixa questöes pertinentes:
1. Crer ou näo crer sem porquês...
2. Adesäo ou rejeiçäo emocional ou racional?
3. Sucedâneos de Deus...
4. religiosidade sem Deus....
5. etc...
 
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
 
Manuel,
Como calculas, näo posso falar em nome de todos os que referes...
Mas entendo que quem não crê, terá as suas razöes. Mesmo que a ti näo te satisfaçam...
 
Manuel,
pensando melhor, acho que a minha resposta anterior não verdadeiramente satisfatória, pois não?

:))))))))
 
Mas crer ou não crer não tem nada a ver com "razões": é uma atitude da mente, mais afectiva/emocional que racional, que, no caso da crença, se baseia - parcialmente - em sinais na Natureza, na História do homem, na consciência da pessoa que crê.

É um puro disparate querer apresentar argumentos racionais contra ou a favor.

Numa discussão sobre o assunto entre um crente e um não crente, este ponto de partida tem que ser claramente entendido.

E o crente deve partir para a discussão pronto a abdicar de tudo o que não é essencial, de tudo o que são meros acidentes do percurso histórico de uma Igreja determinada.

E o não crente deve aderir a uma discussão em que se lhe pede não que abdique da razão, mas que a use assim: Repugna-me por estar em contradição com a razão? Ou passa pelo crivo sem ficar retido? Em vez de: Resulta disto e disto?

É o critério da razoabilidade ( compatibilidade com a razão, não-contradição com a razão ) que deve ser usado, não o da necessidade no quadro da razão. Falando nos termos de uma linguagem formalizada: A compatibilidade lógica, não a dedutibilidade.

E quem diz aqui "razão" também pode pôr "consciência moral".

Se as duas partes aceitarem estas regras, a discussão dá frutos.

ZR.
 
On

Näo conheço respostas verdadeiramente satisfatórias... :)
 
Zé,

Pois. :)
 
"Então e a grande maioria dos que dizem crer em Deus, sabem porquê? Alguma vez pensaram nisso? Ou para eles a questão não se põe?"

Não direi que não se põe, porque me disseram para acreditar desde pequenino. Mas não tinha de se pôr.
Não tenho de explicar porque é que acho que os cogumelos não são naves espaciais disfarçadas. Confesso que não sei provar a falsidade desta afirmação.
 
Por exemplo, e com base nessa metodologia, seria muito interessante uma longa e serena discussão sobre o artigo "Porque sou ateu", de João Vasco, publicado em 18 de Maio em

http://www.ateismo.net/diario/

São expostas, na segunda parte do artigo, consequências racionais da existência de Deus. E encontradas contradições entre estas consequências e princípios éticos universais. É um belo exemplo de demonstração de não-existência por reductio ad absurdum.

Quanto a mim, o que se demonstra - e bem! - é que não existe O deus de certas tradições religiosas, ou , melhor, que a ideia de Deus nessas tradições é ainda muito imperfeita, muito titubeante.

Estas discussões são muito importantes para os crentes, porque podem ajudá-los a perceber a imperfeição das suas concepções sobre Deus, e a distinguir na sua fé o que é essencial do que é apenas acidental, produto da história de uma Igreja particular.

ZR.
 
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