quarta-feira, novembro 29, 2006
Perdäo
A fé traz sempre a certeza serena do perdão de Deus. Para quem acredita, não há pecado que não se apague, nem sacanice sem remédio. Isto faz-nos olhar para a vida com o optimismo de quem sabe que todas as trovoadas são passageiras: o sol despontará, inevitavelmente.
Isto está certo e é bonito. O pior é que não o levamos a sério. Carregamos e atribuímos culpa com a leviandade dos inconscientes. E, embora não o digamos, agimos na sequência angustiante do crime e do castigo. Por isso somos cristãos da regra e da lei. Pomos limites por fora porque não sabemos limpar por dentro. Vemos o pecado como tremor de terra que fará tombar pedras da abóboda celeste sobre a nossa cabeça. E dramatizamos, levando a mão ao externo, em ritual de culpa, certos do castigo e não do perdão.
Ser cristão não é bater no peito compungido. A verdadeira contrição não tem tiques de primata. Tem a leveza das pombas e o céu como limite. A prostração não é uma queda; é rampa de lançamento para os braços do Pai.
terça-feira, novembro 28, 2006
De orelha fita
Dois funcionários de uma loja de decoração preparavam a montra natalícia:
-Passa-me essa estrela grande para colocar aqui em cima.
-A grande tapa os candeeiros. Põe antes a mais pequena...
-E se levantarmos o céu (onde estavam pendurados os ditos...)?
-Depois não se vê...
-Desde que se vejam os candeeiros...
O Natal está à porta...
segunda-feira, novembro 27, 2006
O homem em eclipse
Ora foi que certo dia
o homem eclipsou-se
a data digam a data
a datazinha faz favor
qual data foi por decreto
que a gente se eclipsou
foi só manobra espertice
um dois três e pronto é noite
que nem a lua apareça
seja de que lado for
Uns seguraram-se logo
eram espertos bem se viu
outros cairam ao mar
com cabeça pernas e tudo
quanto a mim perdi a calma
fiquei desaparafusado
tradição cultura estilo
certeza amigos fatiota
tudo fora do seu sítio
um desaparafuso terrível
Segurem-me camaradas
sinto pernas a boiar
cheiro fantasmas enxofre
estou aqui mas posso voar
o parafuso da língua
vai partido vai saltar
agarrem-me! agarra!
pronto
pari o mais leve que o ar
Mário Cesariny, in nobilíssima visão
quinta-feira, novembro 23, 2006
Acordo no desacordo
"Bento XVI e o Primaz da Comunhão Anglicana, Arcebispo Rowan Williams, assinaram esta manhã no Vaticano uma declaração comum, na qual assumem a existência de "sérios obstáculos" no caminho para a unidade entre as duas Igrejas e defendem que o verdadeiro ecumenismo “vai para além do diálogo teológico”, tocando “a vida espiritual e o nosso testemunho comum”.
Estamos todos de acordo quanto às nossas discordâncias. Já é um princípio. Ou näo?
terça-feira, novembro 21, 2006
Falta fazer a prova dos nove...
segunda-feira, novembro 20, 2006
Celibato: lei ou dom? (2)
"O problema do celibato, como lei e porta indispensável para se entrar no sacerdócio, torna-se, na Igreja, uma questão envenenada, deletéria por causa de uma 'outra' Igreja representada por pessoas autoritárias, juízes supremos. Só uma Igreja que saiba curar, encorajar, pode ajudar tanto as pessoas casadas, como os padres. (...)
Em toda a vida cristã, mas de uma maneira particular no que concerne ao celibato e ao casamento, há duas perspectivas totalmente opostas: ou a perspectiva da Boa Nova, da Paraclese (encorajamento no poder do Espírito), do sopro da Graça, da fé alegre e cheia de confiança, da solidariedade que salva e cura, ou então, a perspectiva da lei em toda a sua dureza, dos julgamentos, das sanções, das segregações, com a Graça apenas acrescentada para observar a lei.
Tanto os que são convidados para o sacerdócio, e ao mesmo tempo para o celibato, como aqueles que os convidam, devem estar dinamizados pela Boa Nova: 'O pecado não terá mais poder sobre vós, porque já não estais sob o regime da lei, mas sob o espírito da Graça' (Rom 6, 14)"
Bernhard Häring, in "Que padres... para a Igreja?"
Boa tarde!
Drama
Todo de carne e osso,
Como posso
Transfigurar-me?
A vara de condão que me levanta
Ergue o peso de um homem.
Sou maciço, animal.
Mas no céu, onde vejo
Formas como as da terra,
O aceno divino não sossega:
-Vem, alada semente de outra vida!
E não sei que metade ressentida
Me renega.
Miguel Torga
Todo de carne e osso,
Como posso
Transfigurar-me?
A vara de condão que me levanta
Ergue o peso de um homem.
Sou maciço, animal.
Mas no céu, onde vejo
Formas como as da terra,
O aceno divino não sossega:
-Vem, alada semente de outra vida!
E não sei que metade ressentida
Me renega.
Miguel Torga
sábado, novembro 18, 2006
Sugestäo do dia
Sobre ciência, cientismo e teologia, vale a pena ler este artigo de Sarsfield Cabral.
sexta-feira, novembro 17, 2006
Celibato: lei ou dom? (1)
O celibato sacerdotal volta a estar, como vem sendo cada vez mais recorrente, em cima da mesa blogosférica. Como quase tudo o que penso sobre o tema, já outros o pensaram e disseram, melhor e com mais autoridade, aqui vou deixar alguns textos, com os quais me identifico.
"Muitos padres sentir-se-iam muito melhor, teriam uma vida espiritual mais equilibrada e mais sadia, se fossem casados. A maior parte deles aceitaram o celibato; não o escolheram livremente. Alguns, mais ou menos submissos a uma doutrina, olharam-no e desejaram-no como um sacrifício agradável a Deus e que Lhe manifestava, melhor que qualquer outra forma de vida, o dom total de si.
Alguns outros pensavam mesmo que, assim, ajudariam as pessoas casadas a observar mais convenientemente a castidade própria do seu estado (...).
Ora, para a vida sexual, como para a vida intelectual, o sacrifício pelo sacrifício, ou o sacrifício como consequência de razões teóricas, é um acto suicida.
O sacrifício deve estar ligado radicalmente ao exercício da missão porque ele, sem ser suficiente, é, mesmo assim, necessário ao seu cumprimento.
O empenhamento no celibato supõe, para ser positivo e para ser mantido de forma sadia, uma exigência interior que o tenha, directa ou indirectamente, imposto à partida e que continue a sustentá-lo.(...)
Quanto a mim, penso que, no futuro, os membros de uma comunidade de fé a quem forem conferidos os poderes para a celebração eucarística deverão ter, normalmente, o mesmo género de vida que os outros membros, partilhar com eles as mesmas responsabilidades e riscos, sem pôr de parte qualquer aspecto.
Esta maneira de ver nâo exclui, naturalmente, a possibilidade de vocações para o celibato, sendo elas impostas por fidelidade às exigências íntimas que se perscrutam pessoalmente e provocadas pelas consequências da vida que se deve levar. Mas, então, deve-se tomar essa decisão já adulto, conhecendo já a vida, e näo submetendo-se de maneira voluntarista a normas de origem ideológica e social, mais do que propriamente espirituais.
Cada padre vive o celibato à sua maneira, de uma maneira irrepetível, única no seu contexto social e histórico. De um lado, e no meio de uma grande diversidade, encontram-se os que se submetem e tentam permanecer fiéis à lei, os que fizeram uma opção fundamental por um celibato carismático e perseveram mais ou menos nesse sentido. Do outro, há os que, desde o início, se encontram sob uma lei pesada. Destes, uns vão-se encaminhando para uma autenticidade mais profunda; outros tornam-se rotineiros do dia a dia e um número considerável acaba em dolorosas derrotas".
"Muitos padres sentir-se-iam muito melhor, teriam uma vida espiritual mais equilibrada e mais sadia, se fossem casados. A maior parte deles aceitaram o celibato; não o escolheram livremente. Alguns, mais ou menos submissos a uma doutrina, olharam-no e desejaram-no como um sacrifício agradável a Deus e que Lhe manifestava, melhor que qualquer outra forma de vida, o dom total de si.
Alguns outros pensavam mesmo que, assim, ajudariam as pessoas casadas a observar mais convenientemente a castidade própria do seu estado (...).
Ora, para a vida sexual, como para a vida intelectual, o sacrifício pelo sacrifício, ou o sacrifício como consequência de razões teóricas, é um acto suicida.
O sacrifício deve estar ligado radicalmente ao exercício da missão porque ele, sem ser suficiente, é, mesmo assim, necessário ao seu cumprimento.
O empenhamento no celibato supõe, para ser positivo e para ser mantido de forma sadia, uma exigência interior que o tenha, directa ou indirectamente, imposto à partida e que continue a sustentá-lo.(...)
Quanto a mim, penso que, no futuro, os membros de uma comunidade de fé a quem forem conferidos os poderes para a celebração eucarística deverão ter, normalmente, o mesmo género de vida que os outros membros, partilhar com eles as mesmas responsabilidades e riscos, sem pôr de parte qualquer aspecto.
Esta maneira de ver nâo exclui, naturalmente, a possibilidade de vocações para o celibato, sendo elas impostas por fidelidade às exigências íntimas que se perscrutam pessoalmente e provocadas pelas consequências da vida que se deve levar. Mas, então, deve-se tomar essa decisão já adulto, conhecendo já a vida, e näo submetendo-se de maneira voluntarista a normas de origem ideológica e social, mais do que propriamente espirituais.
Cada padre vive o celibato à sua maneira, de uma maneira irrepetível, única no seu contexto social e histórico. De um lado, e no meio de uma grande diversidade, encontram-se os que se submetem e tentam permanecer fiéis à lei, os que fizeram uma opção fundamental por um celibato carismático e perseveram mais ou menos nesse sentido. Do outro, há os que, desde o início, se encontram sob uma lei pesada. Destes, uns vão-se encaminhando para uma autenticidade mais profunda; outros tornam-se rotineiros do dia a dia e um número considerável acaba em dolorosas derrotas".
Marcel Légault, citado por Bernhard Häring
quinta-feira, novembro 16, 2006
Já chateia...
A propósito da reuniäo do Papa com os chefes de Dicastérios da Cúria Romana, volta a falar-se do celibato dos padres.
Claro que, em Roma, nada de novo.
Acho graça que se coloque sempre a questäo como soluçäo ou näo da crise de vocaçöes e, portanto, da falta de padres. Ou seja, como parte de uma estratégia de angariaçäo de mäo de obra.
No que me toca, penso de forma distinta e talvez esteja aí umas das muitas razöes que me impediräo o acesso à púrpura.
Näo me interessa se haveria mais padres ou näo. Provavelmente näo.
Interessa-me, isso sim, que os poucos que haja sejam homens equilibrados nos seus afectos e sexualidade. E que näo consumam tempo e energia vital a lidar com esse "problema". Que sejam mais felizes. E mais humanos. E melhores padres.
Será isto absurdo ou difícil de perceber?
Há que rir, há que rir...
A falta de sentido de humor devia ser considerada pecado. Podia ser que, assim, se evitassem estes arrufos de mau feitio.
Por outro lado, acho curiosas certas afirmaçöes sobre o carácter "livre e subversivo" dos humoristas de serviço. Säo "livres e subversivos" porque sabem, e ainda bem que assim é, que a única consequência do seu humor säo estas manifestaçöes de falta de sentido de humor.
Se a liberdade subversiva deste humor fosse séria, Maomé e os líderes maometanos receberiam o mesmo tratamento do Papa e outros representantes eclesiásticos. Acontece que quem tem cu tem medo... e parece ser esse o limite de certo humor.
É bom que o humor seja livre e que a Igreja aprenda a viver com isso. Mas também é bom que os humoristas näo se levem täo a sério.
segunda-feira, novembro 13, 2006
Bíblia politicamente correcta
Um grupo de 42 teólogas e 10 teólogos alemães, protestantes na sua maioria, passaram os últimos cinco anos a fazer uma tradução politicamente correcta dos textos sagrados. O novo texto, dizem, pretende eliminar uma certa tendência machista acumulada por séculos de tradição patriarcal e acabar com a discriminação das mulheres, dos judeus e de outros grupos sociais. Assim, o próprio nome de Deus volta ao neutral hebraico Adonai, alternando com outras denominações, como o"Eterno" ou "a Eterna", "Ele", "Ela" "O Vivente", "a Vivente"... Os fariseus passam a aparecer com as fariseias, os apóstolos com as apóstolas e eliminam-se expressões marcadas pela discriminação sexual como "filha de" e "mãe de". As próprias palavras típicas das sentenças de Jesus "Pois Eu vos digo...", passam a ser traduzidas por "pois Eu hoje vos comento..." ou "Eu interpeto...", fazendo passar a ideia que Jesus não pretendia proclamar verdades definitivas, mas uma interpretação mais. A oração ensinada por Jesus aos discípulos passa a ser assim: "Pai e Mãe que estais nos céus...". Um nobre esforço este. Nunca acreditei num Deus machista, misógino, racista ou sectário. Mas esta preocupaçäo com o "politicamente correcto" deixa-me de orelha fita... Sendo a tradução sempre uma traição, não choca pensar que, em sociedades patriarcais, as traduções da Bíblia, feitas por homens enraizados no seu tempo, tenham sido marcadas por esse caldo cultural. É admissível. Mas a ideia de uma tradução "politicamente correcta" não é senão mais do mesmo, levando às escrituras os preconceitos que embebem os dias que correm. O nosso problema continua a ser o que gostamos de atribuír aos fariseus e sucedâneos, como se só a eles afectasse: fixamo-nos na letra da Lei, em vez de perceber o Espírito que nela nos dá a vida. E porque assim é, não descansaremos enquanto não pusermos a Bíblia a dizer o que nos convém, mesmo que para isso a desvirtuemos completamente. Entretidos com as falhas dos escritores, esquecemo-nos do Inspirador. Até ao dia em que Este se afogue em "outras" falhas, de "outros" escritores, mesmo se com o "saber dizer" dos nossos salões. De pouco valerá corrigir os excessos verbais do fogoso Paulo, se não percebermos que não é ele que importa, mas Quem ele anuncia. Ficaremos, porventura, satisfeitos quando convertermos o mensageiro num intelectometrossexual civilizado e cosmopolita, mas não seremos mais santos enquanto não vivermos a Mensagem. Falta-me a competência para uma crítica rigorosa à tradução e por isso a deixo aos biblistas. Mas isto de pegar num texto com a ideia pré-concebida de o fazer dizer certas coisas, faz-me desconfiar. Seja a Bíblia, seja o Fernando Pessoa ou a Jackie Collins. |
quinta-feira, novembro 09, 2006
Tiques...
Há, dentro da Igreja, uma obsessiva tendência moralista. Näo o digo como uma crítica a ninguém, nem muito menos uma leviana generalizaçäo. Digo-o a partir de mim próprio. Quando dou por mim, estou a lançar ao vizinho do lado um olhar recriminador, enquanto um "devias ser, fazer, dizer qualquer coisa" me assoma ao lóbulo frontal. Depois esbofeteio-me mentalmente e a coisa passa. Mas volta sempre, sem aviso nem melhoras.
A permanente referência a um "dever ser" transfere-se quase täo depressa para o outro, como a auto-justificaçäo se apresenta, fresca e ligeira, quando se trata de auto-análise.
E se comecei por situar este tique moralista "dentro da Igreja", é porque me parece que cresce aí à desgarrada, multiplicado pelo clima húmido da espiritualidade puritana. Fora da Igreja também existe, tal como a salvaçäo...
quarta-feira, novembro 08, 2006
...outras m' avergonho...
O senhor Henry Kissinger parece ser o novo consultor de Sua Santidade, em assuntos de política externa do Vaticano.
...m' espanto às vezes...
terça-feira, novembro 07, 2006
Se ainda näo foram...
...tratem de passar por lá. Coisas inteligentes, ditas com humor. Que mais se pode pedir de um blogue?
A aposta do velho Blaise
"No hay escapatoria, porque una vez que se planteó la pregunta uno se encuentra embarcado en ella, dice. La razón no se humilla por tener que apostar, y la apuesta te conviene: «tienes mucho que ganar y nada que perder». Por lo tanto, la apuesta es racional".
segunda-feira, novembro 06, 2006
Como um rio
Que o homem tenda para Deus, não me parece demasiado estranho. Os rios também correm para o mar.
O que me assombra e desconcerta é que Deus se tenha feito homem para me falar de si em mim! E quando me atrevo a empreender com Ele o caminho de regresso à casa paterna, descubro, perplexo, que sempre esteve à minha espera.
O que me assombra e desconcerta é que Deus se tenha feito homem para me falar de si em mim! E quando me atrevo a empreender com Ele o caminho de regresso à casa paterna, descubro, perplexo, que sempre esteve à minha espera.
Prosa desassossegada
"Conquistei, palmo a pequeno palmo, o terreno interior que nascera meu. Reclamei, espaço a pequeno espaço, o pântano em que me quedara nulo. Pari meu ser infinito, mas tirei-me a ferros de mim mesmo".
Fernando Pessoa, aliás, Bernardo Soares